sexta-feira, 20 de maio de 2011

Queira desculpar-nos pela covardia


Era o ano do Pássaro das Águas. Havia morrido o décimo-terceiro dalai lama,o Deus-rei tibetano. Embalsamado e sentado na posição de lótus, estava virado para o sul. Uma pergunta pesava no ar: onde estaria o 14º dalai lama? Em que corpo a alma de Thupten Gyatso reencarnar-se-ia? Naquela noite, após a visitação, dois monges endireitaram o corpo e o rosto. Na manhã seguinte, porém, a cabeça havia se inclinado para o leste. Mais um dia se passou e os monges voltaram a acertar a direção do rosto para o sul. Novamente, a cabeça se virou para o leste. Era o presságio – o novo dalai lama estaria naquela direção.

Dois anos se passaram. Um grupo de Rinpoches (o equivalente ao bispo na Igreja Católica) seguiu para o lago sagrado de Lhamoi Latso para procurar sinais do paradeiro do novo Deus-rei. Era 1935, o ano do Javali do Bosque. Lá viram a aparição de três letras que, decifradas, indicavam a região de Amdo, no noroeste do país.

Partiram e depois de muitas tentativas frustradas bateram à porta de um casebre. Foram recebidos por um garotinho, Lhamo Dondup. Estavam disfarçados de mendigos, mas o garoto não se enganou. Saudou um deles por nome. “Você é Tsedurun Lobsang”, declarou, enquanto lágrimas enchiam os olhos dos monges.

Depois de muitos testes, em que o garoto identificava objetos de uso pessoal do dalai lama entre imitações perfeitas, estava claro: haviam encontrado o 14º dalai lama. No entanto, foram forçados a negociar por mais de um ano com o governador chinês daquela província, que exigiu e recebeu US$300 mil em prata, praticamente toda a fortuna do Tibete, para liberar o garoto.

Ser refém dos chineses virou hábito para o novo dalai lama. Depois de ver o seu sagrado Tibete invadido pelos chineses em 1950 e tentar proteger a sua nação durante anos, foi obrigado a fugir numa noite de 1959 para Dharamsala, na Índia, para formar o seu governo no exílio. Seguiu-se um genocídio onde 3.000 mosteiros foram destruídos, 250 mil tibetanos assassinados, a maioria deles monges. De acordo com o próprio dalai lama, “homens e mulheres foram lentamente mortos enquanto suas famílias eram forçadas a assistir e pequenas crianças eram obrigadas a atirar em seu próprios pais”.

Desde então o dalai lama tem sido incansável na busca da liberdade de seu país, que tem o tamanho de quase toda a Europa junta! O reconhecimento do ocidente veio com o Premio Nobel da Paz. Agora, o dalai lama foi convidado pela ONU a vir à Eco-92. Mas os chineses pressionaram o Itamaraty, dizendo que não estariam em solo brasileiro ao mesmo tempo que o Nobel da Paz. O nosso governo, em vez de deixar os chineses explicarem a sua chantagem para o resto do mundo, se curvou e deu ao dalai lama primeiro quatro e depois sete dias de visto, fazendo com que ele já esteja longe quando a delegação chinesa chegar.

Ironicamente, o dalai lama passará o seu aniversário no Brasil. Aos 57 anos, já está bem acostumado à covardia e a observa com pacientes e serenos olhos. Se tivesse pedido visto com seu nome de Getsul Ngawang Lobsang Tenzin Gyatso teria obtido visto normal de turista. Mas como é o Deus-rei, só poderá ficar sete dias conosco, porque os chineses mandaram. Seja bem-vindo, dalai lama, Deus-rei, e feliz aniversário. Queira desculpar a nossa covardia...


Ricardo Semler

In: "Embrulhando o peixe" (1992, Ed. Best Seller)

domingo, 15 de maio de 2011

Collor vs. Folha


Leia fac-símile da defesa de Otávio Frias Filho, Josias de Souza, Nélson Blecher e Gustavo Krieger no processo movido pelo presidente nos anos 90s (págs. 12 e 13, Primeiro Caderno).

O acesso ao acervo da "Folha de S. Paulo" (todas as edições, desde 1921) por enquanto é irrestrito: período de degustação.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Bombardeio ideológico



De editorial em editorial, o The New York Times vai delineando o estado de espírito da opinião pública. (...) Mas a maior arma estava na virulência belicista de seus articulistas. Dois deles destacaram-se, as estrelas do jornal: Thomas L. Friedman e William Safire [foto].

(...) Um dia depois dos atentados, Safire escreve um artigo agressivo: "Quando pudermos determinar onde estão as bases de nossos inimigos, devemos pulverizá-los, minimizando – mas sem deixar de aceitar – o risco de danos colaterais". É a antecipação do ideário de guerra de Bush.

(...) O jornalista pedia que os Estados Unidos passassem para a fase dois: atacar o Iraque. Mas era preciso agir no momento certo. "E este é o momento."

(...) O jornalista elogiava a política de Bush de atacar qualquer país que abrigasse terroristas. "Com essa compreensão, nossos líderes amadureceram, nossa política externa ganhou novo respeito e a lei internacional foi alterada para sempre".


***

Depois dos atentados de 11 de Setembro , todo tipo de notícia contra Bin Laden era bem-vinda. Ele teria especulado com ações de empresas seguradoras europeias e americanas e das companhias aéreas United Airlines e American Airlines sabendo que a cotação desabaria no mercado. Nunca se deu qualquer indício de como isso foi feito e nunca mais se falou no assunto.

(...) O texto, transcrito pelo Estadão, dizia que Bin Laden "teria" vinte bombas nucleares russas, compradas da máfia russa por 30 milhões de dólares e duas toneladas de ópio. A fonte é a revista Al-Watan. Nenhuma prova é apresentada.

(...) Importante lembrar um artigo do jornalista Robert Fisk, no The Independent britânico, escrito no dia 6 de setembro de 2001: "O erro dos Estados unidos foi não agir corretamente no Oriente Médio. Nos próximos dias será feito um esforço para esquecer os motivos dos atentados. E as atenções estarão voltadas para quem e como foram executados. A CNN e a maioria da mídia já obedecem a essa regra essencial da guerra".


Carlos Dorneles
In: "Deus é inocente: a imprensa, não."

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Obrigado, Paulo Coelho

Trechos do artigo "Obrigado, presidente Bush", de Paulo Coelho, publicado em 2003 na Folha Online (8/3) e no "Le Monde" (17/3) às vésperas da invasão do Iraque, em 20 de março:

"Obrigado, grande líder George W. Bush.

O sr. foi capaz de mostrar muitas coisas importantes ao mundo, e por isso merece minha gratidão. Assim, recordando um poema que aprendi na infância, quero lhe dizer obrigado.

Obrigado por mostrar a todos que o povo turco e seu Parlamento não estão à venda, nem por 26 bilhões de dólares.

Por deixar claro que tanto José María Aznar como Tony Blair não têm nenhum respeito pelos votos que receberam.

Obrigado porque sua perseverança forçou Blair a ir ao Parlamento com um dossiê falsificado, escrito por um estudante há dez anos, e apresentar isso como 'provas contundentes recolhidas pelo serviço secreto britânico'.

Obrigado porque sua posição fez com que o ministro de Relações Exteriores da França, sr. Dominique de Villepin, em seu discurso contra a guerra, tivesse a honra de ser aplaudido no plenário, honra que, pelo que eu saiba, só tinha acontecido uma vez na história da ONU, por ocasião de um discurso de Nelson Mandela.

Obrigado porque, graças aos seus esforços pela guerra, pela primeira vez as nações árabes, geralmente divididas, foram unânimes em condenar uma invasão, durante encontro no Cairo.

Obrigado porque, graças à sua retórica afirmando que 'a ONU tem uma chance de mostrar sua relevância', mesmo países mais relutantes terminaram tomando posição contra um ataque.

Obrigado por ter conseguido o que poucos conseguiram neste século: unir milhões de pessoas, em todos os continentes, lutando pela mesma idéia, embora essa idéia seja oposta à sua.

Agora que os tambores da guerra parecem soar de maneira irreversível, quero fazer minhas as palavras de um antigo rei europeu a um invasor: 'Que sua manhã seja linda, que o sol brilhe nas armaduras de seus soldados, porque durante a tarde eu o derrotarei'."

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Amados Frankensteins

Artigo publicado domingo, 14 de dezembro de 2003, dia da captura de Saddam Hussein.

Capturamos o nosso amado Frankenstein

Graças a Deus Saddam está finalmente de volta às mãos americanas! Ele deve ter tido muita saudade da gente. Cara, como a aparência dele era horrível! Mas, pelo menos, ele conseguiu um exame odontológico gratuito. Isso é algo que não está disponível para a maioria dos americanos.

Os EUA costumavam gostar de Saddam. Nós AMÁVAMOS Saddam. Nós demos dinheiro a ele.

Nós demos armas a ele. Nós o ajudamos a usar armas químicas contra soldados iranianos.

Mas aí ele meteu os pés pelas mãos. Invadiu a ditadura do Kuait. E fez a pior coisa possível. Ameaçou um amigo nosso ainda MELHOR: a ditadura da Arábia Saudita e suas vastas reservas petrolíferas. Os Bushes e a família real saudita eram e ainda são íntimos parceiros em negócios.

Saddam costumava ser nosso bom amigo e aliado. Demos apoio ao seu regime. Não foi a primeira vez em que ajudamos um assassino. Nós gostávamos de brincar de dr. Frankenstein. Criamos uma porção de monstros -o xá do Irã, Somoza, na Nicarágua, Pinochet, no Chile- e depois demonstramos ignorância ou choque quando eles saem de controle e massacram pessoas.

Gostávamos de Saddam porque ele estava disposto a combater o aiatolá. Então garantimos que ele conseguisse bilhões de dólares para comprar armas. Armas de destruição em massa. É isso mesmo, ele as tinha. E nós deveríamos saber bem. Nós as demos para ele!

Permitimos e encorajamos empresas americanas a fazer negócios com Saddam nos anos 80. Foi como ele conseguiu compostos químicos e biológicos para usar em armas. Eis aqui uma lista de parte das coisas que demos para ele (de acordo com um relatório de 1994 do Senado americano):

- Bacillus anthracis, causa do antraz.

- Clostridium botulinum, uma fonte de toxinas de botulismo.

- Histoplasma capsulatam, que provoca uma doença que ataca pulmões, cérebro, medula espinhal e coração.

- Brucella melitensis, uma bactéria que pode causar danos nos principais órgãos.

- Clostridium perfringens, uma bactéria altamente tóxica que provoca doença generalizada.

- Clostridium tetani, uma substância altamente tóxica.

E aqui estão algumas das empresas americanas que incentivaram Saddam ao fazer negócios com ele: AT&T, Bechtel, Caterpillar, Dow Chemical, Dupont, Kodak, Hewlett-Packard e IBM.

Nós éramos tão chegados ao velho e bom Saddam que decidimos dar a ele imagens de satélite para que localizasse tropas iranianas. Nós tínhamos uma boa idéia de como ele iria usar essa informação, e, sem nenhuma surpresa, assim que lhe demos as fotos, ele jogou gás venenoso nos soldados. E ficamos em silêncio. Porque ele era nosso amigo, e os iranianos, nossos "inimigos".

Mais tarde, ele usou o gás contra seu próprio povo, os curdos. Você poderia imaginar que isso nos forçaria a romper relações. O Congresso tentou impor sanções econômicas a Saddam, mas a administração Reagan rejeitou essa idéia rapidamente. Fomos para a cama com esse Frankenstein que nós mesmos (em parte) criamos.

E, exatamente como o mitológico Frankenstein, chegou uma hora em que Saddam saiu de controle. Ele não mais fazia o que seu mestre lhe ordenava. Saddam precisava ser pego. E agora que está domado, talvez tenha algo a dizer sobre seus criadores. Talvez possamos ouvir coisas... interessantes. Talvez Don Rumsfeld possa sorrir e apertar a mão de Saddam novamente. Exatamente como fez em 1983.

Talvez jamais estivéssemos na situação atual se Rumsfeld, Bush pai e companhia não estivessem tão animados nos anos 80 com seu monstro amigo no deserto.

Enquanto isso, alguém sabe onde está o cara que matou 3.000 pessoas no 11 de Setembro? Nosso outro Frankenstein? Talvez ele esteja em uma ratoeira.

Tantos de nossos pequenos monstros e tão pouco tempo antes da próxima eleição...

Fiquem firmes, candidatos democratas. Parem de soar como um bando de bananas. Aqueles bastardos nos mandaram para a guerra com uma mentira, a matança não vai parar, o mundo árabe nos odeia intensamente, e vamos ter de abrir os bolsos para pagar por isso por muitos anos. Nada do que aconteceu hoje (ou nos últimos nove meses) nos deixou um TIQUINHO mais seguros neste mundo pós-11 de Setembro. Saddam jamais foi uma ameaça à nossa segurança nacional.

A única coisa que nos ameaça é o desejo de brincarmos de dr. Frankenstein.

Sinceramente,

Michael Moore